Depois de Prism, extraordinário quinteto de álbuns explorando as heranças de Bach e Beethoven (2018-23), o quarteto dinamarquês propõe uma "viagem através dos sons da música tradicional do norte da Europa", incluindo alguns temas originais [como este Stormpolskan, do sueco Ale Carr] — não uma deambulação nostálgica, entenda-se, antes uma recriação para ser celebrada enquanto acontecimento eminentemente presente.
Retrato de Jean-Luc Godard, c. 1950; auto-retrato de 2022
O cinema de Jean-Luc Godard pode ser visto e revisto, pensado e reavaliado, também através do seu trabalho de imaginação e preparação dos filmes. De facto, ele é autor de uma fascinante “obra plástica” que, agora, pode ser descoberta na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, em Serralves, até 18 maio 2025 — para celebrarmos os valores da cinefilia (este texto foi publicado no Diário de Notícias, 15 novembro).
Num tempo de enfraquecimento do cinema no espaço televisivo tradicional, com as plataformas de streaming raras vezes organizadas de forma motivadora, é caso para perguntar: que é feito da cinefilia? Entre as respostas que podemos encontrar, algumas no próprio circuito comercial, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira, na Fundação de Serralves, no Porto, merece um destaque muito especial. De facto, a equipa dirigida por António Preto continua a desenvolver um exemplar trabalho de divulgação e programação que, agora, apresenta uma notável exposição dedicada à obra plástica de Jean-Luc Godard (1930-2022).
Não será surpresa dizer que a filmografia daquele que, na década de 1960, foi um dos nomes carismáticos da Nova Vaga francesa — não apenas através dos filmes, mas começando pela intervenção crítica — envolve uma dimensão “plástica”. Em qualquer caso, tal reconhecimento não deixa de suscitar uma dúvida metódica: como é que essa dimensão gerou uma “obra”?
Pois bem, tal obra começa por existir como actividade paralela à gestação dos filmes. Bem sabemos que Godard, enquanto criador de um movimento de autores tão talentosos quanto díspares, todos eles empenhados em discutir as regras narrativas clássicas, nunca se dedicou a construir argumentos que satisfizessem essas regras — num desabafo lendário, terá dito que até se podia considerar que os seus filmes, à maneira clássica, tinham “princípio, meio e fim”, ainda que “não necessariamente por essa ordem”. Ao mesmo tempo, a sua nova ordem (que está longe de ser uma desordem banalmente “vanguardista”) pode começar nas imagens organizadas em cadernos de apontamentos cujas matérias vão desde o desenho e a pintura até à reprodução de obras fotográficas e pictóricas.
Página dupla do caderno de preparação de O Livro de Imagem (2018)
O amor do cinema
O mínimo que se pode dizer da exposição patente em Serralves (ao longo dos próximos seis meses, até 18 de maio) é que se trata de um verdadeiro trabalho de amor — será preciso recordar que a palavra cinefilia designa o amor do cinema?Mais ainda: foi feito a partir do interior do universo do próprio Godard, envolvendo o seu espaço mais íntimo e, literalmente, a sua família genealógica e artística.
A exposição apresenta-se com um título em que as componentes narrativas surgem enredadas com a actualidade, nomeadamente através de um jogo de palavras (“conta” dá lugar a “conto”), revelador da alegria criativa de muitas formas “godardianas”. Ou seja: “Tendo em linha de conto os tempos atuais”. A sua curadoria pertence a Fabrice Aragno, Jean-Paul Battaggia, Nicole Brenez e Paul Grivas (sobrinho de Godard), todos ligados às últimas duas décadas da actividade do cineasta, incluindo a produção de filmes e a escrita teórica. Aplicando um trocadilho cúmplice da obra de Godard, esse colectivo adoptou a designação “Ô Contraire!”
O impacto dos materiais expostos é tanto mais impressionante, por vezes tocado por uma comoção muito íntima, quanto podemos descobrir alguns “segredos”, não apenas da trajectória de um cineasta, mas também das suas vivências familiares e sociais. Assim, por exemplo, a par de fotografias da juventude, deparamos com um caderno “panfletário” (Le Cercle de Famille), ainda da década de 1940, em que o adolescente Godard expõe as suas muitas reticências e revoltas perante os valores da burguesia a que pertence a sua própria família.
As fotografias de família, tiradas por sua mãe, Odile Monod, nunca mostradas antes, aparecem lado a lado com outras raridades, muitas delas também desconhecidas do público. A exposição em Serralves surge, por isso, como um evento fundador de um novo capítulo no conhecimento de um universo que sempre se distinguiu por uma agilidade tecida de curiosidade e inteligência. Isto sem esquecer que, para lá dos cadernos de trabalho, ligados à preparação de determinados filmes, há objectos com uma singular componente afectiva. É o caso do caderno dedicado a La Chinoise (1967), feito depois da rodagem do filme e oferecido à actriz principal, Anne Wiazemsky (com quem Godard foi casado entre 1967 e 1979).
Entenda-se, por isso: os materiais expostos, não por acaso acompanhados por diversos objectos do dia a dia (das tesouras aos charutos...), estão longe de se esgotar na função de “preparação” dos filmes. No limite, são derivações antecipadas ou posteriores desses filmes, como se Godard quisesse sublinhar — antes do mais para si próprio — que o cinema não existe como um fim em si mesmo, sendo antes uma entidade de uma constelação de fenómenos criativos em que a pintura ocupa um lugar nuclear. Assim se prolonga um axioma do pintor francês Maurice Denis (1870-1943), citado no programa como definição da modernidade: “recordar que um quadro, antes de ser um cavalo de guerra (...), é essencialmente uma superfície plana coberta de cores numa ordem determinada”.
Alguns objectos pessoais, incluindo tesouras e um charuto
Livros & imagens
À sua maneira, a exposição pode ser encarada também como uma antologia de história(s) de várias décadas da vida (francesa, e não só), uma vez que os seus objectos e imagens arrastam memórias muito diferenciadas — desde o clássico O Círculo Vermelho (1970), realizado por Jean-Pierre Melville (que interpretava o escritor entrevistado em 1960, em O Acossado, primeira longa-metragem de Godard), até aos testemunhos mais ou menos caóticos, divertidos e sedutores, das experiências de Godard com os smartphones.
Nesta perspectiva, importa recordar os laços com uma outra exposição “godardiana” — “Éloge de l’image - Le Livre d’Image” —, integrada na programação do LEFFEST de 2023, concebida por Fabrice Aragno. Tratava-se de um conjunto de variações cénicas e audiovisuais sobre O Livro de Imagem (2018), derradeira longa-metragem de Godard, também amplamente evocada em Serralves.
Agora, podemos identificar melhor — e, de algum modo, percorrer — um método de trabalho que, realmente, trata as imagens como livros. Dito de outro modo: tudo é escrita, tudo é linguagem, tudo envolve a responsabilidade de um criador e, assim se deseja, de um espectador.
Tudo isto, é bem verdade, está desde muito cedo inscrito no labor de Godard como uma espécie de canône de introspecção e criação. Lembremos o exemplo cristalino de Duas ou Três Coisas sobre Ela (1967), tendo como ponto de partida a decomposição das relações humanas, do espaço público até à intimidade sexual (“ela”, recorde-se, é a “região parisiense”). Assumindo a voz off do seu filme, Godard diz a certa altura: “No mundo humano, o nascimento das coisas mais simples, a sua apropriação pelo espírito do homem, um mundo novo em que os homens, ao mesmo tempo que as coisas, viverão relações harmoniosas — eis o meu objectivo. É, afinal, tão político como poético. Explica, em qualquer caso, a raiva da expressão. De quem? De mim, escritor e pintor”.
Para ilustrar essa visão multifacetada, dialéctica, pontuada por muitas formas de um desconcertante humor, a exposição “Tendo em linha de conto os tempos atuais” prolonga-se através de um ciclo de filmes marcados pela relação do criador com a criação, por vezes tendendo para as regras do auto-retrato — lembremos o exemplo modelar de JLG por JLG (1994), a par de vários documentos filmados sobre Godard com assinatura de alguns dos responsáveis pela exposição.
Sublinhando o valor simbólico de tudo isto, logo à entrada, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira recorda um célebre diálogo entre Godard e Oliveira, tema de capa da edição de 4/5 de setembro de 1993 do jornal Libération. Nessa publicação, encontramos uma apreciação do trabalho de Godard por Oliveira que envolve um elogio radical da liberdade artística, podendo funcionar como lema desta fascinante exposição: “É disto que gosto em geral no cinema: uma saturação de signos magníficos banhados na luz da sua ausência de explicação”.
Marina Vlady em Duas ou Três Coisas sobre Ela (1967): um cineasta que é escritor e pintor
Eis um desafio insólito e surpreendente para quem reconhecemos, antes de tudo o mais, como um dos grandes documentaristas contemporâneos. Wiseman encena as relações entre Tolstoi e sua mulher, Sophia, através das cartas que trocaram (vivendo na mesma casa). Em qualquer caso, o homem está literalmente fora de campo, sendo ela quem transporta o peso das palavras que, por vezes, ferem como setas — o cinema é "apenas" esta arte de suspender o tempo e vislumbrar uma eternidade por cumprir.
I want to be the sunlight of thе century / I want to be a vestige of our senses free, canta Jessica Pratt em World on a String [video]. De onde vem este lirismo? Dizem os astros e os jornalistas: de uma intensa nostalgia pelos sixties (incluindo flores e hippies). Talvez. O certo é que o seu quarto álbum de estúdio é também um exercício de genuíno intimismo, espelhado em palavras de envolvente poesia.
Na sua conta da plataforma Substack, Patti Smith dá notícias do livro que está a escrever, partilhando uma sua performance ao vivo, com Tony Shanahan no piano — é um tema dos U2, Love is all we have left, do álbum Songs of Experience (2017).
Como começou o Big Brother televisivo? A mini-série francesa Culte (Prime Video) revisita as suas origens através da história do nascimento da respectiva versão francesa, intitulada Loft Story: um belo exercício de ficção que nos confronta com a violência afectiva da “televisão da realidade” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 novembro)..
Há mais de vinte anos, a vulgaridade da “Reality TV” ocupa espaços e tempos muito significativos nos nossos ecrãs caseiros, mas a reflexão sobre a formatação audiovisual de tão triste fenómeno é praticamente nula. Não acontece assim em França, como se prova pela excelente mini-série Culte, agora disponível, em “streaming”, na Prime Video (em paralelo com a actual programação na versão francesa da mesma plataforma).
É pena que a Prime Video não encare com especial interesse a difusão de Culte. Desde logo porque a série surge apresentada com textos em inglês. Como se isso não bastasse, as legendas disponíveis são em francês (com informações complementares sobre os sons), inglês ou holandês… nada em português. No meio da pompa tecnológica que a maior parte das plataformas gosta de exibir, será que, no seu interior, já não há quem dedique algum tempo a pensar as especificidades culturais dos consumidores?
Entenda-se: não se trata de celebrar Culte como um acontecimento banalmente “temático”. Estamos perante um trabalho de rigorosa concepção narrativa, a começar pela realização de Louis Farge, orientada por um fundamental princípio (temático, precisamente): trata-se de abordar a “Reality TV”, não através de qualquer abstração descritiva ou crítica, mas como um dispositivo gerado por formas concretas de trabalho — neste caso, a criação, em 2001, de Loft Story, variação francesa do Big Brother. Além do mais, os autores da série, Matthieu Rumani e Nicolas Slomka, souberam escolher um elenco de talentosos intérpretes, impecavelmente dirigidos, mostrando que é possível ocupar os ecrãs caseiros com algo bem diferente dos estereótipos das novelas.
Tudo começa com a personagem de Isabelle de Rochechouart (Anaïde Rozam, que vimos, por exemplo, em Paris, 13, produção de 2021 realizada por Jacques Audiard). Na empresa produtora de Philippe Palazzo (Nicolas Briançon), Isabelle e os colegas especulam sobre a possibilidade de criar um programa de “Reality TV” que siga o modelo do Big Brother: um conjunto de pessoas fechadas numa casa durante algumas semanas, permanentemente observadas pelas câmaras, tudo transformado num espectáculo de “animais de feira” (a expressão está nos diálogos) em que as exclusões regulares dos concorrentes resultarão do voto “popular”…
Culte inspira-se em personagens verídicas, nomeadamente John de Mol, fundador da Endemol, a empresa que lançou o Big Brother — aqui, temos Liam de Lint (Koen de Bouw), em qualquer caso, como esclarece uma legenda inicial, não um “duplo”, mas uma figura ficcionada, como acontece, aliás, com todas as personagens da série. Aquela que estará mais “próxima” do que aconteceu será Loana (notável composição de Marie Colomb), claramente inspirada em Loana Petrucciani, concorrente da edição inaugural de Loft Story. Descoberta como bailarina de um cabaret em Nice, Loana é uma personagem de recorte trágico, com uma história pessoal pontuada por muitas agruras e violências que viriam a ser exploradas pela produção, incluindo, contra a sua vontade expressa, a divulgação de imagens do filho cuja guarda lhe fora retirada pela assistência social.
O que é o humanismo?
Sem descurar a complexidade dos factos, incluindo as obscenas manipulações de montagem efectuadas pela produção de Loft Story, os seis episódios de Culte expõem o cruel processo de destruição de qualquer visão humanista dos que surgem na “televisão da realidade”. Tudo isso cruzado com as negociações de bastidores que envolvem a exploração das rivalidades financeiras entre os canais M6 e TF1. Nesta perspectiva, Culte é um parente próximo de Unreal (2015-18), notável série americana, também sobre a produção de um programa de “Reality TV” (já difundida pelos canais TVCine).
Os horrores afectivos potenciados pelo ambiente retratado não envolvem qualquer demonização “generalista” da própria televisão como sistema de comunicação. Aliás, o contraponto é tanto mais interessante, por vezes estranhamente comovente, quanto Culte não desiste do humanismo — e da compaixão humanista — que Loft Story transforma em lixo mediático.
Com uma “coincidência” no mínimo perturbante: Alexia Laroche-Joubert, produtora do Loft Story original, inspiradora da personagem de Isabelle, é também um dos nomes que surge na ficha de produção de Culte. Em defesa dos seus direitos de imagem? É provável, não sabemos. Seja como for, eis um detalhe que nos recorda que a televisão é sempre o contrário da candura naturalista.
Reality Leigh Winner (n. 1991) cumpriu pena de prisão por ter divulgado documentos secretos da National Security Agency (onde trabalhava como tradutora) sobre a interferência da Rússia nas eleições americanas de 2016. Centrando-se na "visita" que o FBI faz a sua casa, este é um espantoso retrato de um espaço/tempo em decomposição face à impacável teatralidade do poder — aliás, Tina Satter começou por tratar o assunto em espectáculo teatral (intitulado Is This a Room). No papel de Reality, Sydney Sweeney merecia estar na corrida dos Oscars.