Renovando a tradição, a próxima sessão do Sound+Vision Magazine propõe um inventário de algumas memórias (musicais, cinematográficas) que marcaram o ano de 2025 — não necessariamente um top, antes a recordação de algumas canções e filmes, talvez menos óbvias, que deixaram memórias fortes.
A renovada maravilha das palavras e da arte de as dizer: Patti Smith partilha alguns pensamentos em torno das memórias de Yasujiro Ozu (1903-1963) — o video foi filmado no dia 12 de dezembro, data do nascimento e da morte de Ozu.
Será possível tocar a Water Music, de George Frideric Handel em guitarra? Eis a pergunta multifacetada (irónica e técnica, numa palavra, filosófica) de Rick Beato — é um dos seus videos mais recentes, como sempre lembrando-nos que escutar música é também abrir o espírito e dispensar as certezas definitivas.
The Rockafeller Skank é um dos temas mais conhecidos do DJ inglês Fatboy Slim, incluído em You've Come a Long Way, Baby (1998), o seu segundo álbum de estúdio. O certo é que existia também numa versão "alternativa", integrando elementos de um clássico dos Rolling Stones (I Can't Get No) Satisfaction (1965), intitulada Satisfaction Skank. Devido à não aprovação dos gestores do património dos Stones, tal versão tornou-se um evento clandestino, apenas tocado nos espectáculos de Fatboy Slim... Até que, passado um quarto de século, Satisfaction Skank recebeu a aprovação oficial — eis a nova/velha versão (com contributo visual da IA) e, em baixo, o tema original.
Verdadeira lenda do R&B, Mavis Staples, 86 anos, não editava um álbum desde 2019 (We Get By). Celebremos, por isso, o lançamento de Sad And Beautiful World, nº15 da sua discografia, aqui apresentado no programa de Stephen Colbert com a canção Human Mind.
Não apenas Rufus Wainwright, mas também as irmãs Martha e Lucy, e o pai Loudon Wainwright III — The Wainwrights estiveram no programa de Jimmy Kimmel, interpretando If We Make It Through December, um clássico de Natal, da colheita de 1973, composto e interpretado por Merle Haggard and the Strangers.
Consagrado com a Palma de Ouro de Cannes, Foi Só um Acidente é mais uma notável proeza do iraniano Jafar Panahi, um exemplo modelar do trabalho de um cineasta que não desiste de filmar a sociedade do seu país — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (12 novembro).
As histórias que o cineasta iraniano Jafar Panahi conta nos seus filmes são indissociáveis das suas vivências, ou melhor, daquilo que ele gosta de classificar como uma inspiração vinda da sociedade. Assim acontece em Foi Só um Acidente, consagrado em maio com a Palma de Ouro do Festival de Cannes. O implacável desenvolvimento do seu drama envolve um homem que, ao ouvir um determinado som, julga detectar a presença daquele que o torturou na prisão — um som a que, por assim dizer, falta uma imagem. Daí nasce uma tensão visceralmente cinematográfica (imagem/som) que reflecte as convulsões de um espaço social dividido por muitos muros, alguns metafóricos, outros tragicamente realistas. Por alguma razão, Panahi aceita que o classifiquemos, precisamente, como um cineasta realista.
Há uma premissa dramática muito especial a partir da qual se constrói um filme como Foi Só um Acidente. Como surgiu essa premissa e de que modo, a partir daí, desenvolveu o argumento?
Sou um realizador que faz filmes que têm que ver com a sociedade. Nesse sentido, o que me inspira é a própria sociedade, o lugar onde vivo, as pessoas à minha volta — pessoas comuns, mesmo quando se trata apenas de ir ao fundo da rua para comprar alguma coisa na mercearia. Mas podemos pensar noutro contexto, por exemplo convivendo durante alguns meses com pessoas que falam de coisas que são novas. Quando falamos com essas pessoas, não é para encontrar uma ideia para fazer um filme — é apenas uma conversa de fim do dia. O certo é que quando saímos desse contexto, fica a vontade de regressar. E vemos um muro muito longo e alto — estamos de fora, mas essas pessoas ainda estão lá dentro. Não estamos a pensar fazer um filme, mas há um peso que ficou connosco e perguntamos: que posso eu fazer? Talvez possa fazer um filme sobre tudo isso. Como posso começar?
Que muro é esse?
É um muro de uma prisão — está entre nós, que permanecemos de fora, e as pessoas que ainda estão lá dentro. É um muro que nos separa, aprisionando aqueles que serão, talvez, os melhores do nosso país, especialmente os mais jovens. É um muro que alguns governos constroem para manter as pessoas separadas daquilo em que realmente acreditam. Ora, é a altura para fazer alguma coisa pelas pessoas que estão do outro lado do muro. Por isso, é preciso fazer um filme sobre essas pessoas. Como começar? É preciso começar pela nossa própria experiência. Que aconteceu quando estávamos a ser investigados e interrogados? Ao sermos interrogados, éramos colocados em frente a uma parede, com os olhos tapados, davam-nos papel e uma caneta para escrevermos as nossas respostas. A pessoa que me interrogava estava atrás de mim — e eu pensava: qual será o aspecto desta pessoa, poderei reconhecê-la apenas pelo que ouço? Se a encontrar fora da prisão, conseguirei reconhecê-la? E foi assim que encontrei a minha ideia para Foi Só um Acidente.
Nessa medida, este é um filme que reflecte uma experiência pessoal.
Não, não se trata se trata apenas da minha experiência pessoal. O que está em jogo é, sobretudo, a experiência de outras pessoas que estiveram na prisão, comigo, no mesmo espaço. Estiveram na prisão mais tempo do que eu, cinco anos, dez anos — contaram-me as suas histórias. Digamos que é uma experiência de reunião.
Que pessoas sofrem com essa experiência?
Quase todas as pessoas no Irão. Não quero dizer com isto que todas as pessoas, no plano individual, sofram directamente com essa experiência — pode ser alguém da família, um amigo, pode ser um vizinho que esteve na prisão por causa das suas ideias.
Considerando alguns dos seus filmes, tal como O Círculo (2000) ou Três Rostos (2018), somos levados a pensar que essa experiência é especialmente dura para as mulheres.
Quando digo que sou um cineasta que filma a sociedade, quero eu dizer que há determinadas limitações nessa sociedade. Assim, começo por falar do grupo de pessoas que são mais atingidas por essas limitações — e esse grupo são as mulheres. De qualquer modo, num filme como Três Rostos, tudo se passa entre mulheres e homens. De facto, não se trata de dizer para quem as coisas são mais duras — são coisas que se acumulam, numa estrutura que está a destruir as pessoas. Nos meus filmes, o importante é o factor humano.
Pensando na personagem central da sua primeira longa-metragem, O Balão Branco, em 1995 premiada em Cannes com a Câmara de Ouro, podemos perguntar: numa sociedade assim, que se passa com as crianças? Como aprendem a viver?
Lembro-me desse tempo: a situação era muito mais difícil do que é agora. Havia muita censura. Com frequência, os cineastas começavam a fazer cinema começando pelas crianças. Não quero com isto dizer que se tratava de fazer filmes para crianças, mas sim sobre crianças — os adultos falavam através da boca das crianças. Apresentar crianças nos nossos filmes era uma espécie de desculpa para escapar às limitações impostas pelo governo. A partir do meu terceiro filme [O Círculo], disse a mim próprio: as crianças já cresceram, que andam agora a fazer? Agora, com Foi Só um Acidente, são as mesmas crianças de há trinta anos.
Com todas essas experiências, podemos classificá-lo como um cineasta realista?
Sim, absolutamente. No caso de Foi Só um Acidente, quis que o espectador fosse capaz de aguentar, comigo, os últimos vinte minutos. Em alguns momentos, talvez possamos dizer que há um humor amargo, por exemplo quando surge a questão do suborno — essa é, aliás, uma característica dos governos em decomposição. Mas tudo isso desaparece nos últimos vinte minutos, há uma maior intensidade. Na última cena, ao ouvirem aquele som inquietante, os espectadores suspendem a respiração e são levados a perguntar: e agora, que vai acontecer?
Tendo em conta esse final de Foi Só um Acidente, faz algum sentido, para si, falar na possibilidade de fazer um outro filme que seja a continuação deste?
Não pensei nisso, mas habitualmente não gosto de sequelas.
* Recentemente, Jafar Panahi foi mais uma vez condenado, neste caso à revelia, pelas autoridades iranianas. Encontrava-se, na altura, nos EUA para participar na cerimónia dos Gotham Awards (prémios que distinguem a produção independente), onde o seu filme Foi Só um Acidente recebeu três distinções: realização, argumento original e filme internacional — eis o agradecimento de Panahi quando recebeu o prémio de realização.
Digamos, para simplificar, que é um dos grandes filmes de 2025: Na Linha da Frente— título original: Heldin ("heroína") — faz o retrato íntimo, quer dizer, tecido de delicadas intimidades, de um turno da noite num hospital suíço, tendo como pivot a personagem de uma enfermeira a lutar para não ser vencida pelas dramáticas exigências do seu labor.
Com a sublime Leonie Benesch no papel central (já vimos Oscars serem entregues por infinitamente menos...), o filme escrito e realizado por Petra Volpe renova as nossas esperanças num realismo à flor da pele. A saber: uma opção narrativa e uma postura moral capazes de resistir às chantagens "naturalistas" com que, todos os dias, a televisão procura entorpecer o nosso olhar e secar a nossa inteligência.
Lost in the Stars, poema de Maxwell Anderson, música de Kurt Weill, é uma daquelas canções que possui o equilíbrio de transparência e mistério que define um verdadeiro clássico — aqui na imaculada interpretação de Judy Garland, em 1964, numa edição de The Judy Garland Show.